Recebi o texto abaixo num sinaleiro. Num dia frio e chuvoso, parado no trânsito engarrafado no meio da tarde de um dia de semana comum, imerso em meus próprios problemas e elucubrações. De meu torpor observei uma senhora por entre os carros; Todos de janelas fechadas, alheios a existência daquela senhora que persistia ir, de veículo-à-veículo, com um sorriso resignado no rosto.

Muito magra, apresentava as marcas das dificuldades de sua própria existência. Os cabelos inteiramente brancos mostravam o cuidado contido daqueles que não se podem dar ao luxo das vicissitudes da vaidade. Os maltratados fios estavam, dentro do possível, bem escovados e contidos embaixo de um puído, embora bem lavado, lenço. A pele, bastante clara, estava inteiramente enrugada e maltratada pelos incontáveis dias que estivera exposta ao mundo sem qualquer proteção. Os fundos olhos claros traziam a tristeza uma história longínqua, fora de alcance, e a falta de perspectiva para o dia de amanhã. A fome havia marcado aquela senhora como ferro em brasa. Sem dúvida aparentava ser muito mais velha do que deveria ser.

Surpreendi-me envergonhado por estar, até aquele momento, torcendo para que não houvesse tempo para que àquela senhora chegasse à minha janela. O abre-fecha dos sinaleiros era insuficiente à fluidez do tráfego, cada vez intenso àquela hora. Acordei com o fitar aflito do outro lado do vidro, a menos de 20cm de distância e num mundo completamente diferente e distante de minha realidade. Ao abrir o vidro o frio, chuva, ruídos e odores invadiram o veículo. Tirei da carteira e lhe estendi R$ 2,00, como uma espécie de pedágio para aplacar parte da culpa pelo acidente do acaso que proporcionou a boa sorte de minha existência. Ela olhou, sorriu e me estendeu um pacote balas que recusei educadamente. Os olhos da senhora brilharam de forma estranha, e ela falou:

– “Um poema então. Sou eu quem escreve. Qual prefere? O da velha ou o do amor?”

O orgulho de produzir algo para o próprio sustento era evidente. Escolhi:

– “Hum… O da velha, então.”.

De seu bolso ela me estendeu o texto que segue abaixo. Também contou que tinha netos e tudo que pôde nos breves momentos que precederam a retomada no fluxo de veículos. De seu texto o que se destaca é a assinatura e a declaração de sua idade. Velha muito precocemente, aos 58 anos, tinha na idade uma declaração de sobrevivência e nos netos a extensão de uma esperança que nunca se concretizou para si mesma.

Curioso, nestes dias e na mesma rua e quadra perguntei pela senhora que ficava no sinaleiro. Quisera ver o que ela diria do amor. Ninguém mais há viu. Talvez tenha morrido. Simplesmente sumiu sem aviso e sem deixar rastros. Desapareceu despercebidamente como provavelmente sempre viveu. Segue o texto que ela me entregou:

Dê boas-vindas aos anos avançados. Significam que você caminha mais adiante na senda da vida que não tem fim.
Deus é Vida e esta é agora a sua vida. A vida sempre se renova, é eterna e indestrutível, é a realidade de todos os homens. Você vive eternamente, porque sua vida é a vida de Deus.
A prova da sobrevivência após a morte é inegável. Examine as Atas da Sociedade de Pesquisa Psíquica da Grã-Gretanha e da América. A obra está baseada nas pesquisas realizadas por eminentes cientistas durante mais de 75 anos.
Você não pode ver sua mente, mas sabe que possui uma mente. Você não pode ver o espírito mas sabe que o espírito da pessoa corajosa, o espírito do artista, o espírito do músico, o espírito do orador, todos são reais. Da mesma forma, o espírito da bondade, da verdade e da beleza interna.
Vovó – 58 anos
ganho meu pão abençoado de minhas próprias idéias.
Obrigado
Vovó cici

 
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